Características da oclusão na dentição decídua
Yohana Lourenço Dias - Graduanda em Odontologia, UFPR
Profa. Dra. Juliana Feltrin de Souza Caparroz – Professora da disciplina de Odontopediatria, UFPR.
Muitas pessoas acreditam que não
é necessário preservar e intervir na dentição decídua, haja visto que
posteriormente haverá outra dentição para substituí-la. Porém, essa afirmação
não é correta. É de suma importância que a dentição decídua mantenha-se íntegra
e que eventuais desequilíbrios sejam corrigidos, a fim de garantir as funções
orais e estética adequadas durante toda a infância. Além disso, o melhor é que
o diagnóstico de possíveis maloclusões seja realizado precocemente, e que seja
feita a análise do crescimento a fim de preservar uma relação de normalidade na
infância, para que assim, sejam menores as chances de precisar intervir na
dentição permanente.
Segundo o autor clássico Cohen, a oclusão “perfeita” é encontrada apenas na teoria, o que se busca clinicamente é uma “oclusão satisfatória”, na qual todos os dentes estão em harmonia, os arcos dentários se encaixam corretamente e há o equilíbrio do sistema estomatognático, assegurando saúde e bem-estar ao indivíduo.
Diversos fatores podem interferir negativamente na oclusão, entre eles os hábitos deletérios como o uso de chupetas, sucção de dedos ou lábios e o hábito de morder objetos. O uso de mamadeira, a respiração bucal e a deglutição atípica também podem contribuir para o desenvolvimento de alterações oclusais. É importante monitorar esses hábitos e disfunções e corrigi-los precocemente, evitando assim problemas oclusais no futuro.
Diante de todas essas considerações, para estabelecer o diagnóstico correto e traçar um plano de tratamento adequado, é necessário conhecer as características de normalidades da dentição decídua, as quais serão abordadas a seguir.
Desenvolvimento da oclusão na dentição decídua
Ao nascimento a mandíbula encontra-se posicionada mais posteriormente que a maxila. Com os estímulos funcionais e o potencial genético de crescimento bucofacial, tanto a maxila quanto a mandíbula assumem uma relação entre arcos dentários mais harmônica e preparada para o início da irrupção dos dentes decíduos, a partir dos 6 a 8 meses de vida.
A primeira relação oclusal se estabelece através do contato entre os incisivos superiores e inferiores, que apresentam nessa fase, um trespasse horizontal e vertical acentuado. O trespasse horizontal ou overjet, é a distância vestibulolingual entre o incisivo central inferior e incisivo central superior, podendo variar de 0 a 4 mm. Já o trespasse vertical ou overbite, é a distância vertical entre as bordas incisais dos incisivos centrais decíduos, podendo os superiores cobrir de 10% a 40% dos inferiores (Figura 3). A redução dessa sobremordida e sobressaliência ocorre conforme a criança aumenta em idade.
Quando irrompem os primeiros molares decíduos, a guia de oclusão que anteriormente era estabelecida somente pelos incisivos, passa a ser realizada também pelos molares. Além disso, com contato entre esses dentes, há o surgimento da primeira intercuspidação e o primeiro ganho de dimensão vertical de oclusão (DVO).
Seguindo a cronologia de irrupção, assim que os caninos aparecem na cavidade bucal e contatam-se em máxima intercuspidação, auxiliam na manutenção da dimensão vertical de oclusão, no estabelecimento da guia canina para os movimentos de lateralidade da mandíbula e promovem a desoclusão posterior, levando a guia de oclusão novamente para os dentes anteriores.
A estabilidade da oclusão e da dimensão vertical é alcançada quando irrompem os segundos molares decíduos e esta permanece relativamente estável até próximo dos 4 anos de idade da criança.
Fonte: “Primeiros mil dias de vida e a saúde bucal - 2019” |
A - Mandíbula retraída em relação à maxila B - Mandíbula e Maxila em relação harmônica
Fonte:
https://www.sorriacomocrianca.com.br/2013/12/09/oclusao-dentaria-desenvolvimento-do-sistema-mastigatorio/ |
Figura 2: Arcada decídua completa em oclusão
Fonte: https://dentagama.com/news/malocclusion-difference-between-overbite-overjet-and-open-bite |
Figura 3: Trespasse horizontal (overjet) e Trespasse vertical (overbite)
Vista Vestibulolingual:
Os dentes decíduos estão inseridos na cortical óssea de modo vertical, por isso as faces incisais e oclusais se encontram no mesmo plano, e consequentemente essa dentição está nivelada, sem apresentar a “Curva de Spee”. Além disso, a “Curva de Wilson” também está ausente na dentição decídua, pois o longo eixo dos dentes superiores e inferiores está paralelo, sem inclinação acentuada para vestibular ou lingual. Tanto a Curva de Spee, quanto a de Wilson são características normais da dentição permanente.
Fonte:
http://ortodontiauniville.blogspot.com/ |
Figura 4: Curvas de Spee e Wilson presentes na dentição permanente
A - Curva de Spee B - Curva de Wilson
Fonte: https://www.sanarsaude.com/images/p/D2_apresentacao_site.pdf (modificado) |
Figura 5: Plano oclusal reto da dentição decídua. Ausência de Curva de Spee
Fonte: https://pt.slideshare.net/suzanacardosomoreira/aula-desenvolvimento-da-oclusa-opdf |
Figura 6: Eixos dos dentes superiores e inferiores decíduos paralelos. Ausência de Curva de Wilson
Além disso, nos primeiros meses
de vida, o côndilo (cabeça da mandíbula) e a Articulação Temporomandibular
(ATM), situam-se próximo à altura do
plano oclusal, alcançando gradativamente uma posição mais alta em relação a
esse plano, à medida em que ocorre o desenvolvimento facial.
Fonte: https://www.sanarsaude.com/images/p/D2_apresentacao_site.pdf (modificado) |
Figura 7: Côndilo na altura do plano oclusal - dentição decídua
Outro aspecto que pode ser observado a partir da vista vestibulolingual, é o tipo dos arcos dentários decíduos, os quais foram classificados em dois tipos, por Baume, de acordo com a presença ou não de diastemas na região anterior, superior e inferior. O arco tipo I é aquele que apresenta espaços generalizados entre os dentes anteriores, o que irá favorecer o posicionamento e alinhamento dos dentes permanentes. Já o arco classificado como tipo II é aquele que não possui espaços entre os dentes decíduos anteriores, podendo resultar em um mal alinhamento e aumentar a possibilidade de apinhamento dentário na próxima dentição.
Fonte: https://www.passeidireto.com/arquivo/63254587/arco-de-baume-tipo-i-e-ii |
Figura 8: Classificação de Baume
A - Arco Tipo I B - Arco Tipo II
Com relação aos espaços das arcadas dentárias, pode ainda ocorrer um diastema bem evidente na dentição decídua, o chamado Espaço Primata, localizado entre o incisivo lateral e o canino, na maxila, e entre o canino e o primeiro molar decíduo, na mandíbula. Esse diastema não está relacionado com os tipos de arco de Baume e não está presente em todas as arcadas, mas, também pode contribuir para o alinhamento adequado da próxima dentição.
http://ortodontiauniville.blogspot.com/2018/04/oclusao-normal-na-denticao-decidua_98.html |
Figura 9: Espaços primatas do arco superior e inferior
Relações oclusais:
A dentição decídua, assim como a permanente, apresenta diversas relações oclusais. Um dos parâmetros utilizados para avaliar a oclusão nessa dentição é a relação entre os caninos decíduos, que de acordo com Foster e Hamilton, pode ser dividida em três classes. A classe I ocorre quando os caninos superiores e inferiores ocluem no espaço primata antagonista. Já na classe II, o canino inferior oclui distalmente ao espaço primata superior e na classe III, a oclusão se dá mesialmente a esse espaço.
Fonte: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5062730/mod_resource/content/3/Ana%CC%81lise%20da%20Dentic%CC%A7a%CC%83o.pdf |
Figura 10: Classificação das relações de oclusão entre os caninos decíduos
Outro parâmetro usado na avaliação da oclusão dos dentes decíduos é a relação entre os segundos molares superiores e inferiores, tomando como referência a face distal desses dentes. Dessa forma, três relações podem ser observadas:
● Relação molar em plano: As faces distais dos segundos molares decíduos encontram-se alinhadas em um mesmo plano vertical.
● Relação molar com degrau mesial: A superfície distal do segundo molar inferior posiciona-se mesialmente em relação a superfície distal do segundo molar superior.
● Relação molar com degrau distal: A superfície distal do segundo molar inferior posiciona-se distalmente a superfície distal do segundo molar superior.
Essa relação é importante pois tem grande influência no posicionamento dos primeiros molares permanentes, já que os segundos molares decíduos servem de guia para o irrompimento destes dentes.
Fonte: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5062730/mod_resource/content/3/Ana%CC%81lise%20da%20Dentic%CC%A7a%CC%83o.pdf (modificada) |
Figura 11: Relação molar dos segundos molares decíduos
A - Relação em plano B - Degrau Mesial C - Degrau Distal
O Espaço Livre de Nance compara o segmento posterior dos dentes decíduos e permanentes. Nance observou que a medida mesiodistal dos caninos e molares decíduos é maior que a mesma medida dos seus sucessores, caninos e pré-molares permanentes, ocasionando uma sobra de espaço nessa região, quando se estabelece a dentição mista. Isso ocorre, principalmente, porque o segundo molar decíduo apresenta um comprimento mesio-distal maior do que os segundos pré-molares.
Figura 12: Espaço Livre de Nance na arcada superior e inferior
Vista Oclusal:
Vários autores estudaram as variações nas formas dos arcos dentários na infância. Para os autores Barrow e White, as formas dos arcos poderiam ser divididos em cônicas, ovais ou trapezoidais, sendo as últimas, a mais prevalente em seus estudos.
Porém, o estudo mais conhecido é o de Carrea (1920). Esse autor utilizou pontos dentais de referência para estabelecer padrões de normalidade para as arcadas decíduas, os quais podem ser utilizados para análise oclusal e observação de alterações. Os pontos de referência utilizados foram: um ponto na distal de cada segundo molar decíduo e outro ponto entre os incisivos centrais. Unindo esses pontos, traçou-se um triângulo equilátero, e usando a bissetriz de seus ângulos, verificou-se que esta passava pela cúspide dos caninos no arco superior, e pela crista marginal mesial do primeiro molar no arco inferior. Além disso, após determinar o centro do triângulo, traçou uma circunferência circunscrita, que passava pelas bordas incisais dos incisivos e caninos, sulco principal do primeiro molar e cortava a cúspide distopalatina do segundo molar, no arco superior. Já no arco inferior, passava pela borda incisal de canino a canino, cúspide vestibular do primeiro molar e sulco principal do segundo molar.
Utilizando uma placa de resina transparente, o diagrama de Carrea e um modelo da arcada dentária da criança, o cirurgião-dentista pode avaliar as características da dentição decídua e quando necessário, estabelecer um plano de tratamento para a correção das alterações observadas na oclusão.
Fonte: Odontopediatria: Guedes-Pinto
Figura 13: Diagrama de Guedes na arcada superior e inferior,
respectivamente
Os aspectos da dentição decídua que são mais favoráveis ao estabelecimento de uma oclusão mista e permanente satisfatória e equilibrada, com consequente melhora na qualidade de vida da criança e adolescente, são:
● Arco tipo I de Baume no qual o
espaçamento entre os dentes decíduos favorece o irrompimento da dentição
permanente de modo alinhado, com menor chance de apinhamento dentário.
● Classe I de Foster e Hamilton no qual o
canino oclui no espaço primata antagonista, direcionando o irrompimento dos
caninos permanentes nesta mesma posição, equilibrando a oclusão.
● Relação molar em plano que contribui para o irrompimento dos primeiro molares permanentes em classe I de Angle, favorecendo uma oclusão harmoniosa.
Referências
Carlos, G. A. Odontopediatria, 9ª edição. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2016. 9788527728881. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788527728881/. Acesso em: 19 Mar 2021
A. S. Odontopediatria: bases teóricas para uma prática clínica de excelência. São Paulo]: Editora Manole, 2020. 9786555762808. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555762808/. Acesso em: 19 Mar 2021
LILIANA, T.; LÚCIA, C.; (COORDS.), W.R.M.E. Odontopediatria: A Transdisciplinaridade na Saúde Integral da Criança. São Paulo: Editora Manole, 2016. 9788578682446. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788578682446/. Acesso em: 19 Mar 2021
JOÃO, B.; VITOR, B.S.; HONÓRIO, C.M. Interação Odontopediátrica - Uma Visão Multidisciplinar. São Paulo: Grupo GEN, 2011. 978-85-412-0045-5. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-412-0045-5/. Acesso em: 19 Mar 2021
Cristiane, D. Odontopediatria - Uma Visão Contemporânea. São Paulo: Grupo GEN, 2013. 978-85-412-0230-5. Disponível em: https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/978-85-412-0230-5/. Acesso em: 19 Mar 2021
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